O Brasil viveu uma agonia conjunta após a grande repercussão
do aborto legal de uma criança no Espírito Santo (ES), grávida após viver
quatro de seus 10 anos sendo estuprada pelo próprio tio. O estuprador foi
identificado e preso. Mas as sequelas psicológicas jamais serão apagadas.
Longe dali, na região Nordeste, o Piauí contabiliza, ao
todo, 2.943 abortos notificados oficialmente em dois anos. Foram 2.251 em 2019
e 692 em 2020, até a última quinta-feira, 20. Os números levam em conta
abortos espontâneos, por razões médicas, legais e de causas inespecíficas. Os
dados são da Secretaria de Estado da Saúde (SESAPI).
Em outras palavras, o Piauí não foge à realidade de um
Brasil onde uma menina entre 10 e 14 anos aborta por dia. Ou que uma menina da
mesma faixa etária é estuprada a cada hora. Esse levantamento do Anuário
Brasileiro de Segurança Pública de 2019 descortina aquilo que muitas pessoas
preferem virar o rosto.
Média nacional é de um aborto por dia entre meninas de 10 a 14 anos - Foto: Reprodução |
De acordo Ana Maria Coêlho Holanda, médica ginecologista e
obstetra, é possível que o procedimento
seja feito de forma segura.
“O abortamento, espontâneo ou induzido, é um dos
procedimentos mais seguros dentro da obstetrícia, desde que ele seja realizado
em ambiente adequado, com equipe capacitada e material e métodos recomendados.
Essa é a definição de aborto seguro, segundo a Organização Mundial de Saúde
[OMS]”, explica.
No entanto, como toda cirurgia, existem riscos inerentes ao
procedimento.
“Os riscos no abortamento induzido seguro são semelhantes àqueles
no abortamento espontâneo, dependendo principalmente da idade gestacional em
que é realizado, métodos utilizados e a presença de doenças preexistentes na
mulher, sendo os principais: hemorragia, perfuração uterina, isto em casos onde
é realizado esvaziamento através de aspiração manual intrauterina [AMIU] ou
curetagem. Restos ovulares, quando algum material não foi totalmente eliminado,
também pode causar infecções”, acrescenta a médica.
Complicações aumentam com a idade gestacional
A possibilidade de complicações aumenta conforme a idade
gestacional, crescendo assim também o risco de morte materna. “Em gestações até
8 semanas esse risco é menos de 0,3 por 100.000 induções, enquanto em gestações
acima de 21 semanas é de 11 por 100.000, porém é importante ressaltar que mesmo
quando comparamos ao abortamento realizado em idades gestacionais avançadas, os
riscos de complicações e óbito materno ainda são muito maiores quando a
gestação é levada até o termo, com pelo menos quatro vezes mais risco de
óbito”, considera a médica.
Ana Maria Côelho Holanda, médica ginecologista e obstetra -
Foto: Divulgação
O Brasil ainda está atrasado quanto ao abortamento ilegal.
“Quando falamos em abortamento inseguro, provocado, de forma ilegal no nosso
país, quando é realizado por pessoas sem treinamento adequado, ou utilizando
técnicas perigosas ou em ambiente inadequado, esses riscos aumentam
exponencialmente, sendo uma das principais causas de morbidade e mortalidade
materna em todo o mundo. Nessa situação as seguintes complicações são descritas
na literatura médica: hemorragia, infecção, traumatismo, isto é, lesão ou
perfuração de útero, bexiga e outros órgãos, anemia, falência renal e óbito”,
relata.
Aborto clandestino
mata
O aborto clandestino geralmente é realizado de forma
insegura, em locais sem equipamentos médicos necessários, monitorização da
paciente, e utilizando de técnicas perigosas e não recomendadas, além de
medicamentos que muitas vezes são de procedência duvidosa.
“Nesses casos não é
raro nos depararmos com a paciente que chega ao serviço de saúde com atraso,
muitas vezes já com infecção grave ou após hemorragia importante; isso quando
não vemos apenas as notícias de mulheres encontradas mortas após serem
“descartadas” de clínicas clandestinas”, reforça Ana Maria.
Em muitos casos a mulher fica estéril.
“Principalmente se
houver complicações que levem a necessidade da retirada do útero. Quando
realizado de forma segura, seguindo as técnicas corretas, há um risco baixo de
formação de sinéquias, que são aderências que podem levar a infertilidade”,
aponta a médica.
O tal do citotec
O medicamento conhecido popularmente como “citotec” se trata
do misoprostol, principal medicamento recomendado na realização de abortamento,
independente da causa. “Além de também ser importante na prática obstétrica na
indução do parto normal, prevenção e tratamento de hemorragia pós parto. Os
perigos relacionados a esse medicamento no aborto realizado por conta própria e
fora do ambiente hospitalar se tratam do desconhecimento em relação à
procedência e qualidade do remédio, que tem venda limitada, dosagem adequada,
via de administração e cuidados após o uso”, explica Ana Maria.
A médica ressalta para os danos que a medicação pode trazer
quando usada sem prescrição adequada. “É importante ressaltar que, como todos
os medicamentos, ele possui contraindicações e efeitos colaterais que
geralmente são desconhecidos pelo público leigo, levando a complicações com seu
uso indiscriminado.
Aborto seguro no
Piauí
O Piauí conta com os serviços de apoio à mulher vítima de
violência sexual (SAMVIS), sendo o principal deles está localizado na
Maternidade Dona Evangelina Rosa.
Aborto legalizado é feito de forma segura no Piauí - Foto:
Reprodução
Também há situações em que há o acompanhamento pré-natal e
do parto de menores de 14 anos, que pela legislação brasileira já é
caracterizado como estupro de vulnerável.
“Nesses casos sempre conduzimos como
uma gestação e parto de alto risco, principalmente devido a seu elevado risco
de complicações como pré-eclâmpsia, diabetes, partos distócicos, prematuridade,
com elevadas taxas de morbimortalidade materna e perinatal”, finaliza
Países desenvolvidos permitem o aborto
O aborto legal e seguro é uma realidade em muitos países,
independente do período gestacional. No Canadá, o aborto é permitido até o nono
mês de gravidez. Os Estados Unidos e a Europa também permitem o abortamento. No
Brasil ele é permitido apenas em casos de estupro ou quando a mãe e/ou o bebê
correm risco de vida.
No entanto, como ter uma relação sexual com alguém com menos
de 14 anos é considerado um estupro de vulnerável, muitas meninas nessa faixa
etária acabam procurando o serviço de saúde para evitar a situação de uma
criança cuidando de outra. Na contramão disso tudo existe a religião e o juízo
de valor individual de uns perante o útero de outras.
Ao mesmo tempo, mulheres mais velhas recorrem a métodos medievais
ou clínicas clandestinas, arriscando a vida para não colocar no mundo mais
alguém para endossar a crise socioeconômica existente entre os mais pobres.
Diante de uma realidade onde milhares morrem todos os anos em macas de hospital
tentando se livrar de um feto, o Brasil caminha para uma discussão mais
profunda sobre a legislação que compete ao abortamento.
Meio Norte