segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Casal confessa envenenamento de família em Parnaíba; entenda todo o caso

Parnaíba, no Piauí, foi palco de um dos mais graves casos de envenenamento em série da história recente. Em menos de seis meses, oito pessoas, sendo sete da mesma família, morreram após ingerir alimentos contaminados com terbufós, um pesticida de uso agrícola altamente tóxico e com venda controlada no Brasil.

No dia 31 de janeiro, a Polícia Civil prendeu Maria dos Aflitos Silva, suspeita de envolvimento direto nos crimes. Seu companheiro, Francisco de Assis Pereira da Costa, já havia sido preso no início do mês. As investigações indicam que ambos participaram do envenenamento de filhos, netos e uma vizinha de Maria dos Aflitos.

As primeiras mortes

O primeiro caso foi registrado em 22 de agosto de 2024, quando João Miguel Silva, 7, e Ulisses Gabriel Silva, 8, passaram mal após ingerirem alimentos contaminados. Os meninos eram filhos de Francisca Maria da Silva e netos de Maria dos Aflitos. Eles foram internados em Teresina e morreram semanas depois: João Miguel em 12 de setembro e Ulisses Gabriel em 10 de novembro.

João Miguel Silva e Ulisses Gabriel Silva/Reprodução

A princípio, Francisco de Assis afirmou às assistentes sociais do Hospital Estadual Dirceu Arcoverde e à polícia que os meninos haviam consumido cajus supostamente doados por Lucélia Maria da Conceição, vizinha dos fundos da residência. No dia seguinte, 23 de agosto, Maria chegou a registrar um boletim de ocorrência contra a vizinha, acusando-a diretamente pelos envenenamentos. Enquanto isso, Francisco de Assis entregou à polícia uma sacola contendo cajus que supostamente seriam aqueles doados por Lucélia.

Lucélia Maria da Conceição, vizinha da família/Reprodução SSP

Além das afirmações iniciais de que João Miguel Silva e Ulisses Gabriel Silva ingeriram cajus supostamente envenenados, todos os outros depoimentos feitos pelo casal Maria dos Aflitos e Francisco de Assis, além de outros familiares, contribuíram para o desvio das investigações naquele momento.

Lucélia é descrita por testemunhas como uma mulher com temperamento explosivo e histórico de desavenças com crianças da região. Durante a investigação, a polícia, cumprindo mandado de busca e apreensão, encontrou terbufós na casa de Lucélia, substância que a vizinha havia negado possuir. Além disso, um gato foi encontrado morto em frente à sua residência e a perícia confirmou que ele também havia sido envenenado com terbufós.

Gato envenenado em frente à casa de Lucélia/Reprodução SSP

Em depoimento, Lucélia declarou que o irmão a havia ensinado a usar o pesticida nos cajus para matar morcegos, o que reforçou as acusações de Maria dos Aflitos. Diante dessas evidências, Lucélia foi presa preventivamente. No entanto, uma nova sequência de mortes deu novos rumos à investigação

No almoço fatal de Ano Novo do dia 1º de janeiro de 2025, nove membros da família passaram mal após almoçar baião de dois. Cinco morreram nos dias seguintes: Manoel Leandro da Silva, 18; Igno Davi da Silva, 1 ano e 8 meses; Maria Lauane da Silva, 3; Francisca Maria da Silva, 32;  e Maria Gabriela da Silva, 4.

Reprodução 

Neste caso, tanto Maria dos Aflitos quanto Francisco de Assis apontaram que o alimento envenenado seriam manjubas (peixes) doadas por terceiros, na tentativa de fazer com que a suspeita de uma possível intoxicação alimentar recaísse sobre outra pessoa. No entanto, exames toxicológicos comprovaram que o alimento envenenado foi, na verdade, um baião de dois preparado no dia 31 de dezembro de 2024.

As investigações mostraram que o alimento foi contaminado na madrugada do primeiro dia do ano de 2025, após a festa de Réveillon, ocasião em que apenas Maria dos Aflitos e Francisco de Assis estavam acordados. O alimento foi requentado no dia seguinte, por ordem de Francisco, e servido à família.

Arroz envenenado/Reprodução 

A perícia demonstrou que o veneno foi introduzido na panela onde o arroz foi originalmente preparado e armazenado, reforçando a hipótese de crime premeditado. Maria dos Aflitos foi a única que declarou que não comeu nenhum alimento no horário da refeição. Francisco de Assis mudou de versão sobre o consumo do alimento todas as vezes em que foi questionado pelos investigadores, vindo a apresentar sintomas apenas quase quatro horas após o ocorrido, o que, segundo a perícia, pode caracterizar uma contaminação dérmica, pelo manuseio da substância, e não por ingestão.

A última vítima

Em 22 de janeiro, mais uma morte chamou a atenção dos investigadores. Maria Jocilene da Silva, 41, vizinha de Maria dos Aflitos, morreu após ingerir café na casa da suspeita. Segundo as investigações, as duas mulheres possuíam um envolvimento amoroso de longa data, antes mesmo da chegada de Francisco de Assis à família.

Maria Jocilene da Silva, amante de Maria dos Aflitos/Reprodução 

Jocilene havia sido hospitalizada após o episódio do Réveillon e recebeu alta. Ela foi a única que permaneceu cuidando de João Miguel e Ulisses Gabriel no hospital e chegou a perder o emprego por isso. Além disso, havia denunciado a falta de assistência de Maria dos Aflitos às crianças.

Para tentar despistar a polícia, Maria dos Aflitos afirmou, no momento da chegada dos agentes, que Jocilene teria sofrido um infarto, justificando que a vítima já teria tido um episódio similar anos atrás, em Brasília. O depoimento, registrado em áudio, reforça a linha investigativa de que a idosa tentou confundir as autoridades e encobrir mais um envenenamento dentro da própria casa.

A perícia recolheu a taça de vidro utilizada por Jocilene e encontrou traços de terbufós. Maria afirmou aos policiais que, enquanto os demais usaram copos plásticos, a vizinha preferia uma taça de vidro — a única lavada antes da chegada da polícia.

Com a morte de Jocilene, as suspeitas contra Maria dos Aflitos se fortaleceram.

Confissão e motivação do crime

Após sua prisão em 31 de janeiro de 2025, Maria dos Aflitos confessou o assassinato de Jocilene. No depoimento, revelou que a envenenou acreditando que isso ajudaria a libertar Francisco de Assis, assim como aconteceu com Lucélia. "O que houve é que eu tava cega de amor pelo Assis, e pra ter ele de volta, poderia acontecer o mesmo caso", afirmou a suspeita. "Gosto muito dele, ainda gosto", completou.

Maria dos Aflitos confessou ter agido ao lado de Francisco de Assis, seu marido/Reprodução SSP

Maria afirmou que os primeiros envenenamentos foram cometidos por Francisco, que desprezava seus filhos e netos. Disse que desconfiou dele, mas que estava "cega de amor". Ainda segundo ela, seu companheiro premeditou a história dos cajus para envenenar as crianças e acusar Lucélia. Maria confirmou que as duas primeiras crianças mortas teriam sido envenenadas através de um suco, do tipo refresco, e que Francisco adicionou veneno ao arroz durante a madrugada, enquanto ela dormia.

Sobre a morte de Jocilene, Maria contou que encontrou o veneno atrás do fogão e colocou todo o conteúdo no café que ela mesma serviu à vítima, pois havia pouca quantidade. Em seguida, ela descartou a embalagem no lixo, que foi recolhido pela coleta de lixo antes da chegada da perícia. Jocilene, sem perceber, bebeu o café em uma taça e depois usou o mesmo recipiente para tomar água. Cerca de 30 minutos após ingerir o veneno começou a passar mal, ainda na residência.

Ódio como motivação

As investigações indicaram que Francisco de Assis tinha profundo desprezo pelos filhos e netos de Maria. Ele controlava os alimentos da casa, armazenando-os em um baú trancado, cuja chave ele carregava pendurada no pescoço, levando a episódios de fome na residência.

Francisco de Assis foi preso/Reprodução 

Durante buscas, a polícia encontrou documentos que reforçam sua obsessão por ideais nazistas. A dimensão da crueldade de Francisco se aprofundou com a análise de livros encontrados no baú e em uma segunda casa que somente ele tinha acesso. Entre as obras, uma chamou a atenção dos investigadores: Médicos Malditos, que detalha práticas da SS nazista. Trechos estavam grifados, incluindo uma anotação sobre o uso de substâncias para matar pessoas: "mas para despistar as futuras vítimas, o produto deveria ser eficaz e sem gosto", descrição que coincide com as propriedades do terbufós.

Segundo o delegado Abimael Silva, que conduziu as investigações, Francisco de Assis e Maria dos Aflitos foram os únicos durante toda a investigação que mentiram e omitiram diversos pontos chaves, além de mudarem versões de fatos relevantes para a investigação por diversas vezes, sempre com a finalidade de afastar quaisquer suspeitas sobre o casal e incriminar terceiros. “A investigação revelou que o modus operandi utilizado nos dois primeiros crimes foi idêntico: a utilização de veneno, a oportunidade e a justificativa. Divergindo do terceiro, praticado apenas por Maria dos Aflitos”, explica o delegado.

No primeiro caso, Assis e Maria viram a oportunidade de iniciar a empreitada criminosa quando os meninos chegaram em casa com uma sacola de cajus, e utilizaram isso como álibi para o mal estar das crianças, induzindo a polícia em erro ao indicar os cajus como alimentos envenenados, omitindo o consumo de outros alimentos pelos meninos.

Manjubas apreendidas/Reprodução 

No segundo caso, a oportunidade de concluir o plano criminoso surgiu com o recebimento por Assis de peixes (manjubas) doados por terceiros. Ele utilizou os peixes como álibi para o mal estar das pessoas, induzindo a polícia em erro ao indicar a doação como alimento envenenado. Assis chegou a ir junto com a Polícia Militar fazer diligências à procura do doador de peixes ainda no dia do crime. No entanto, a família consumiu três alimentos no almoço: feijão tropeiro, arroz e manjuba.

“Percebe-se um meticuloso plano e espera inteligente para a prática dos dois primeiros crimes, sendo o intervalo entre os dois crimes mais de 4 meses. Isso revela uma preparação meticulosa e paciente na execução”, comenta o delegado Abimael.

O mesmo não ocorreu no terceiro crime, o qual revelou impulsividade, falta de atenção em detalhes e diferenças no modus operandi, demonstrando falta de planejamento. A conclusão dos investigadores foi que Maria dos Aflitos agora estava sozinha na prática do crime. “A ‘assinatura’ dos dois primeiros crimes não estava mais no terceiro, pois a justificativa foi outra, um infarto, o tempo entre os crimes foi curto, revelando impulsividade e a execução foi mal planejada. Isso tudo, aliado à rápida atuação da Polícia Civil, permitiu a imediata conclusão da autoria deste terceiro crime”, explica o delegado.

De acordo com os investigadores, Assis possui inteligência perceptível, por outro lado Maria dos Aflitos tem baixa escolaridade (analfabeta), não sabe a própria data de nascimento e, conforme disse Assis, "é preguiçosa". “Fica claro que os dois primeiros crimes foram executados e planejados de forma meticulosa e paciente, o que se encaixa no perfil de Assis, sendo o último praticado de forma diversa, sem atenção nos detalhes”, concluiu o delegado.

Com a prisão de Maria dos Aflitos e Francisco de Assis, a Polícia Civil concluiu que os envenenamentos foram premeditados e executados de forma meticulosa. Os dois responderão pelas mortes de oito pessoas, um dos casos mais chocantes já registrados no Estado. Informações Conecta Piauí 

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